segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

SOU EU O DEFICIENTE?
Porque sou tetraplégico, preso a uma cadeira de rodas, chamavam-me "aleijado". Por sofrer de cegueira, fui considerado "deficiente físico". Psicótico, trataram-me como um bichode-sete-cabeças. Agora, por ter perdido um braço num acidente, cuja pancada
me deixou lesões permanentes, sou qualificado de "portador de deficiências física e mental".
Mudam os termos, mas não a cultura que ponha fim aos preconceitos que me cercam. Antes, diziam que era mongolóide; agora sofro de síndrome de Down. Era leproso; agora tenho hanseníase...
Nesta sociedade contaminada pelo síndrome de Damme e que cultiva a idolatria dos corpos - ainda que a cabeça se assemelhe à do camarão - sou confinado, léxica e socialmente, às limitações que carrego.
Se saio à rua, poucas rampas encontro, em passeios e prédios, para passar com a minha cadeira de rodas. Com frequência, há um carro estacionado no lugar a mim reservado.
Temo um novo atropelamento ao cruzar a rua, pois o tempo do semáforo e a fúria dos motoristas não respeitam a lentidão deste corpo que se apoia na bengala. Muitas vezes, na rua, dependo da solidariedade anónima para subir para o autocarro ou me poder sentar no metro. À noite, sonho com fantasmas que gritam aos meus ouvidos:
Fica em casa! A tua debilidade é o teu cárcere! Não te atrevas a imiscuir-te neste mundo de corpos esbeltos e saudáveis, sarados e curados, lindos e louros...
Não se dão conta que esta nação cultiva heróis que ousaram desafiar os limites do corpo? O Brasil não tem nenhum santo canonizado e nunca o prémio Nobel chegou a estas terras. Em compensação, chutamos a bola como ninguém; corremos na Fórmula 1 numa velocidade que nenhum outro mamífero alcança; erguemos os braços vitoriosos em campos de ténis e voleibol. Tu, nem herói nacional podes ser! Se ao menos pudesses requebrar sobre o gargalo de uma garrafa, haverias de merecer o teu minuto de fama!
Fica em casa! Não fico.
Nem aceito que as minhas limitações permaneçam estigmatizadas por expressões equívocas. Não sou um portador de deficiência. Sou um portador de inteligência, aptidões e talentos; de dignidade e de cidadania.
Por que não qualificam como deficientes visuais aqueles que usam óculos?
Sou um PODE! Portador de direitos especiais.
Todos temos direitos universais.
Tenho direito também aos especiais:
equipamentos sociais, prioridade no atendimento público, estacionar em local reservado, etc. Quero ser definido,não pela carência que atinge a minha saúde, mas pelo direito que a sociedade está obrigada a assegurar-me.
Como qualquer pessoa, preciso trabalhar. Sei que não tenho aptidão para certas tarefas, devido ao meu descontrole motor. Mas de quantas coisas sou capaz, graças à minha inteligência e cultura, habilidade e talento! Sei pintar com a boca ou com
os dedos dos pés; posso ensinar idiomas ou computação sem me erguer da cadeira; sou bom no controle de qualidade dos produtos.
O que seria de nós se Beethoven fosse discriminado como surdo e Stephen Hawking como aleijado? E se Van Gogh permanecesse internado após cortar a própria orelha? E se Lars Grael ficasse em casa lamentando a perda de uma perna?
Deficiente é quem traz, na vida, um défice com quem precisa de solidariedade: o pai que ignora o filho doente; a mãe que se envergonha da filha excepcional; o empresário que exige "boa aparência" aos seus funcionários; o poder público que não
constrói equipamentos, nem põe na cadeia quem discrimina um portador de direitos especiais.
Vontade de fazer as coisas eu tenho. Capacidade também. Sei que posso, sou um PODE. Só faltam oportunidades e quem reconheça que, antes dos direitos especiais, tenho também direitos universais.

Frei Betto Fonte: www.adital.com.br

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